À espera que a chuva pare
“Andar é uma arte que contem no seu seio o menir, a escultura, a arquitetura e a paisagem. A partir deste simples ato foram desenvolvidas as mais importantes relações que o homem estabeleceu com o território”
In: Careri, Francesco “Walkscapes: O caminhar como prática estética”, 2002
Podemos prever que a dialética entre dois artistas oriundos de duas realidades geograficamente distintas, dimensionais e insulares, assim como de culturas contrastadas, possa resultar num evidente choque antagónico. Isto é o que parece ser previsível, mas as aparências iludem e tornam-se num encontro improvável de traços comuns entre Bruno Côrte e Izumi Ueda Yuu. Sensivelmente separados por 12,000 Quilómetros de distância no que diz respeito às suas origens, trabalham na atualidade na cidade de Lisboa desenvolvendo o presente projeto expositivo intitulado “Waiting for the rain to stop”. Nesta mostra, preconizam um universo dual na demonstração das suas práticas artísticas, para num primeiro encontro a dois esclarecer afinidades ou pontos de contacto. Desde os seus particulares processos de recoleção, característica detetável como sendo fio condutor dos seus traços identitários, ou a espera pela particularidade do momento e dos objetos que guardam a sua aura, ou ainda, a proposição de uma descoberta atmosférica sobre o sentido da vida, o animismo obrigatório para poder continuar. Apesar das distâncias, já o referimos anteriormente, numa origem remota como a que existe entre o Funchal e Tóquio, o mais importante será referir e presenciar o agora, o tempo da reunião das memórias. Talvez a maior distância seja a do tempo na experiência vivencial, neste aspeto, creio que a infância assume um papel fundamental nas propostas que nos são apresentadas, tratando-se sobretudo, a meu ver, de um ensaio do tempo, um ralenti paciente sobre o modus operandi de cada um.
Entre os dois artistas é apresentada uma pauta de acontecimentos, onde verificamos uma entrega ao tempo das suas experiências que confrontam uma espera constante e paciente, “um espaço privilegiado da scholé (o tempo livre para o estudo ou a meditação)”1, essa mesma meditação passa sobretudo pelo andar, como nos recorda Careri, baseada no simples processo biomecânico, por isso natural, isto parece-me ser o cerne dos processos criativos de cada um, caminhar, deambular, observar, medir, contemplar e recolher. Talvez seja oportuno relembrar que “waiting for the rain to stop”, título sugerido por Izumi a Bruno e que terá sido equacionado na passada primavera chuvosa, uma primavera sem fim anunciado como a marcação dessa dinâmica do tempo, no esperar que a chuva pare e se inicie uma outra fase, a da reconciliação.
Podemos antever que nas pesquisas efetuadas por ambos segue-se uma contemplação despretensiosa e poética sobre o mundo e os objetos, entre o artifício e a natureza, tratando-se disto como o surgimento de uma segunda pele ou vestimenta, dá-se o desaparecimento do corpo e inicia-se o encontro com a fabricação do vestígio. Importa salientar que ambos recorrem ao trabalho de recoleção e talvez partilhem o conceito de coleção, ainda que sendo diametralmente opostos quanto às opções ou escolhas, encontramos uma essência do deambular, do caminhar implícito em grande parte das obras apresentadas, uma caminhada revigorante e necessária para o encontro cognitivo e criativo.
Na seleção apresentada por Bruno Côrte e dividida em três séries de trabalhos, encontramos numa primeira série trinta objetos, alguns do quais iniciados em 2004 e que continuam num fabrico meticuloso até aos nossos dias. Estes objetos, formados por folhas e ramos, encerram uma natureza de várias espécies com costuras em fio de juta, ou ainda, outros que parecem ser embalsamados, outrora submersos em cola, que solidificados permanecem perenes preservando a sua origem vegetal. Trata-se de pequenos casulos ovóides, invólucros costurados que encerram uma realidade tão incógnita como aberta, procuram a preservação das características botânicas, objetos que pacientemente trabalhados, catalogados e colecionados ao longo dos últimos anos encontram-se agora dispostos numa mesa ao longo do espaço dignificando a exploração contínua sobre os elementos naturais que caracterizam a sua pesquisa. Nessa evolução dá-se uma consequência, um decantar para os processos de abstração, que classificada agora numa série de impressões sobre papel de seda de apurados grafismos compostos por um especialista, estão devidamente organizados segundo uma rigorosa malha regular e calculada, característica que o artista nos tem habituado a encontrar ao longo da sua obra. Ainda, resultará pertinente encontrar a sua proposta de redefinição da paisagem, apresentando novamente por meio de uma desconstrução e apropriação, uma perceção paisagista onde se reúnem a modo de mosaico uma multiplicação de pontos de vista de variados elementos vegetais capturados pelo olhar de uma fragmentação fotográfica. Isto é bem patente nas linogravuras, uma simplificação de texturas geométricas dos caules e folhas, provocado pelo aglomerado gráfico destes elementos que vão adquirindo inconscientemente uma realidade simbólica, codificando o que absorve o artista numa intensidade dialética com as plantas. Trata-se finalmente de um herbário reconstruído, uma quase fossilização premeditada e calculada, domesticando estas espécies vegetais, como num jardim botânico invertido ou um laboratório transgressor de um museu de história natural inventado.
Por outro lado, Izumi Ueda Yuu apresenta várias séries como o resultado de um trabalho de campo quotidiano, marcadamente autobiográfico e meditativo sobre o tempo e a ausência do corpo, dando ênfase à desmaterialização reconhecida ao longo da sua carreira. Recordamos aqui os seus conhecidos torsos, figuras humanas acéfalas e mutiladas, esculturas de papel colorido, que no presente contexto expositivo guardam reminiscências numa série de sapatos, artifício e vestígio dos pés, da caminhada calculada. Importa referir que Izumi transporta um passado cultural animista, daí que apresente a sua obra sempre relacionada com o espaço onde a insere, esta especificidade espacial opera em nós ocidentais o sentido da aura, conhecida em japonês com a designação de “Ma”, estamos a falar de um espaço entre as coisas, de um possível limbo ou atmosfera, um ar envolvente e especial que está presente e torna significante a relação entre os objetos, a manifestação energética seja quais forem os meios de expressão: impressão, esculturas em papel, objetos encontrados, colagens. Desta forma, esclarece-nos a artista: “eu vejo Ma no espaço português”, tratar-se-á certamente de um convite cultural, uma ponte oferecida para a predisposição espiritual do oriente. Ainda nesta série de sapatos em papel, concebidos a partir de mapas encontrados, multiplicam-se as possibilidades do caminhar, de uma cartografia urbana que é contrariada pela leveza material do papel. Nas suas gravuras, desde a monotipia à água-forte, encontramos as texturas características de uma rugosidade espontânea e visceral, figuras fantasmáticas e incompletas, por vezes, vestidas de uma ausência do corpo e placidamente acompanhadas de um decorativismo de flora e fauna, ou ainda, numa reminiscência quase que surrealista na conjugação de impressões aprisionadas em velhas molduras onde se desenham pernas, uma luva, uma caixa envolta e um objeto (cabo de guarda chuva), provavelmente um passeio citadino à chuva, tratar-se-á de uma chuva ácida do passado? Tudo em Izumi parece assumir o peso da memória, as suas sugestões imagéticas e parciais apresentam, se quisermos, o guião de uma narrativa incompleta, fragmentada e íntima. Nas suas monotipias encontramos rostos inquietantes, deformes, manchados e fugazes, como na figura de uma criança com uma cabra em braços, em termos materiais é continuada a tradição do fabrico de papel japonês, feito à mão num trabalho diário e lento, tudo continua no berço, na origem.
Bruno Côrte e Izumi Ueda Yuu recordam-nos a importância da presença, do estar e do ser num cultivo íntimo, quer nos objetos, quer nas narrativas visuais inconclusas. As conexões e o diálogo são possíveis entre o quotidiano que emana das obras, quotidiano esse sempre circunstancial e mantido à deriva do encontro de um tempo próprio e consumido na tranquilidade e no poder oculto, no interior de uma verdade sobrenatural, como outrora escreveu Wagner: “O Homem é exterior e interior. Os sentidos aos quais o homem se apresenta como objeto artístico são a visão e a audição: à visão representa-se o homem exterior, à audição o homem interior”2. É neste estado de coisas que se presencia o latente que há entre as obras de ambos.
Duarte Encarnação
(Prof. Auxiliar na Faculdade de Artes e Humanidades, Universidade da Madeira)
1 MAROT, Sébastien: “Suburbanismo y el arte de la memoria. Land & Scapes Series”, Gustavo Gili, Barcelona, 2006, Pág. 33
2 WAGNER, Richard: “A obra de arte do futuro”, Antígona, Lisboa, 2003, (1o Ed. 1849), Pág. 45